terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A MÁQUINA DO TEMPO







Eu sempre quis uma máquina do tempo. De todas as tecnologias fantasiosas que se incorporaram ao imaginário humano, sempre achei essa a mais desejável. Claro que há concorrentes de peso, fornecidos por décadas de ficção científica. Há quem prefira um aparelho de teletransporte, para poder estar em qualquer lugar num piscar de olhos. Seria mesmo emocionante ter um desses. Viagens instantâneas e sem custo, conhecer o mundo inteiro, acompanhar de perto todos os grandes acontecimentos, poder estar com as pessoas mais próximas mesmo quando sejam distantes na geografia. Maravilhoso, sem dúvida. Outros poderiam optar por pílulas de invisibilidade. Ou uma roupa ou capa, qualquer coisa que deixe a pessoa invisível. As aplicações são infinitas, nem todas louváveis. Seria possível, por exemplo, observar animais ariscos inteiramente à vontade no seu habitat natural, sejam leões, ursos ou mulheres. Também daria para saber o que os outros realmente pensam de você, como eles realmente são. Pessoalmente, acho que há métodos mais interessantes de buscar essas respostas, mas muitos discordarão e um produto que forneça invisibilidade teria muitos adeptos.
Um outro hit entre os inventos ficcionais são os variados métodos de imortalidade. Algumas variantes clássicas vêm acompanhadas de graves efeitos colaterais, como uma certa hipersensibilidade à luz do sol e a necessidade de se alimentar de sangue humano. Nesses termos, não creio que valesse a pena. Mas estamos – ainda estamos – no plano da ficção, de modo que podemos imaginar uma tecnologia aperfeiçoada, liberta desses inconvenientes. Aí sim seria tentador, sobretudo se for possível manter razoável qualidade de vida pela eternidade afora. No entanto, a imortalidade seria uma máquina do tempo sem marcha a ré, o que é uma evidente limitação. Além de não permitir a exploração do passado em sentido estrito, ou seja, o passado que veio antes do seu nascimento, a imortalidade poderia revelar-se catastrófica se combinada com erros graves. E não parece muito agradável a idéia de ficar preso eternamente a uma vida equivocada. Por essas e outras, prefiro muito mais a máquina do tempo.
Há vários usos mundanos para uma máquina do tempo, alguns realmente sedutores. Desnecessário falar do interesse histórico e científico. Prefiro me ater a aspectos mais pessoais. Imagino que seria algo como colocar a vida num disco de DVD. Gostou especialmente daquela cena ou capítulo? Simples, basta retroceder e (vi)ver de novo. Vai doer, é chato? Avance a fita até o ponto desejado. Essas são, por assim dizer, as funções básicas de uma máquina do tempo. São legais, úteis, reconfortantes. Mas não são o melhor. O melhor é que uma máquina do tempo pode te dar uma segunda chance. Essa seqüência de ação não está com a cara boa, o mocinho está em apuros? Retorne à hora anterior e pegue o caminho mais longo e seguro. Não se despediu de alguém porque não sabia que se tratava de uma despedida. Volte lá e diga o que estava apenas subentendido. Fez errado, estragou tudo? Refaça do jeito certo.
Passei os últimos meses lamentando a inexistência desse aparelho e até sonhando com a sua invenção. Não pode ser impossível. Não para uma humanidade que domesticou um planeta, foi ao espaço, ao centro da Terra e ao fundo do mar, criou meios para destruir a si mesma. Só está faltando direcionar a energia para a coisa certa, para as necessidades reais. E não me ocorre nenhuma necessidade mais premente do que uma máquina do tempo. Bem, esse foi meu primeiro pensamento. Com um pensamento apenas a humanidade já teria se destruído mesmo. Então veio um segundo pensamento. Se cada um tivesse uma máquina do tempo, seria o caos. O problema da vida é que ela acontece ao mesmo tempo pra todo mundo. Experimente deixar o elevador de um prédio movimentado sem ascensorista para ver como as pessoas têm dificuldade em gerenciar os pontos de interseção das suas vidas, mesmo os mais simples. Imagine agora aquele cara que cospe na rua com uma máquina do tempo na mão. Ou então o motorista embriagado. Imagine o estrago que essa gente não faria, voltando no tempo o tempo todo e bagunçando a vida alheia. É, não dá pra universalizar uma tecnologia dessas. Bom, ainda me restava a alternativa elitista de querer restringir o acesso a uns poucos privilegiados. Ou só a mim, ora bolas. Não soa democrático, mas confesso que gostaria.
Como se pode perceber, eu já estava consumindo energia imaginando soluções para problemas inexistentes, e até sendo egoísta. No fim das contas, eu não tinha a tal máquina do tempo, nem perspectivas de obter uma. Aí então me veio um terceiro pensamento, e esse foi o redentor. Eu não posso voltar no tempo e desfazer um erro. Que merda. Mas posso trabalhar no presente para, num futuro próximo, recolocar a vida no exato trilho de antes. É verdade que não dá pra apagar um trecho que foi escrito, nem escrever um parágrafo da direita pra esquerda do tempo, a fim de preencher a lacuna que tenha ficado. Mas se der pra retomar o texto no exato ponto em que deveria estar nesse momento, essa também será uma forma de manipular o tempo. É brilhante. Tem a simplicidade das idéias geniais. Mas não posso fazer isso sozinho. A dificuldade da vida é que ela acontece ao mesmo pra todo mundo.
É por isso que preciso da sua ajuda. Se eu tivesse estado em coma nos últimos quatro meses, você estaria ao meu lado na hora de acordar. Aposto minha vida que estaria. E eu estava em coma. Não é possível que haja tanta diferença entre ser mesmo atingido por uma carreta e entrar num hospital com as próprias pernas e preencher uma ficha pedindo que te liguem uns eletrodos na cabeça e te espetem umas agulhas. A diferença é que senti as agulhadas. Mas estou bem desperta agora.
É isso então. Estou dando a você a chance de contrariar a física e sair impune, de fazer algo de grandioso e inscrever o próprio nome ao lado dos grandes, ainda que sem holofotes. Estou te dando a chance de presentear alguém com aquilo que ele sempre imaginou de mais maravilhoso, mas inteiramente impossível. Estou te entregando o projeto de uma máquina do tempo e pedindo que construa uma pra mim. Spielberg pagaria milhões pela idéia. George Lucas daria a vida por isso. Mas o milagre é meu e dou para quem eu quiser. É Seu.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Saramagueando


A ILHA DESCONHECIDA.
'Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais.As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz,talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra...Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar,
 à procura de si mesma.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Elo



Tomou uma xícara do café requentado com um orgulho espantoso e olhou pelo vidro fosco os primeiros raios tímidos do sol de terça-feira. Há muito não se olhava no espelho, não via sua imagem desgastada pelas fendas dos tempos. E elas aprofundavam-se numa velocidade espantosa. Profundas, cada vez mais profundas. Mais um gole, envolvendo a louça com as mãos geladasabsorvendo todo aquele calor necessário. Era julho. Antes do último gole, um naco de pão sem manteiga, sobre a mesa de madeira escura e rústica. Mogno. Sentava-se.-


Essa cena me veio a mente quando entrei na casa da minha bisavó.Lá ainda estava sua presença semi-física, como se o velório fosse uma grande encenação .Como se a qualquer momento ela fosse aparecer com seu andar debilitado, para nos receber com o seu clássico choro de saudade.Involuntariamente esperei alguns segundos, ela não veio.


Enquanto todos iam para a cozinha ,segurei o passo e entrei no quarto.Lá ainda estava o terço pendurado sobre o encosto da cama, as imagens de santos e os folhetos de oração ,eram rastros de sua fé em vida que naquele momento me serviam de alento, como pistas que indicavam onde é sua nova morada. Na estante,fotos das infinidades de filhos,netos ,bisnetos e agregados. No armário, os crochês e tricôs tecidos com esmero pelas mãos envelhecidas.


Voltei a sala.No final do ambiente, estava a mesa comprida que outrora servira de cúpula para as mais esparafatosas reuniões da família.

À mesa o café quente e as guloseimas faziam juz a tradição mineira que prega que as visitas não saiam mal servidas- ainda que de um velório-. Num primeiro instante,dilatavam-se os olhos num pavor concreto .Embotava o colorido dos sorrisos fáceis.

-Essa era a hora do pãozinho da dona théa' comentou tio zezé pra quebrar o gelo.

Esboçei um sorriso, misto de nostalgia e resignação.Aos poucos, junto com o café , os nós passavam gargantas a dentro e as línguas desgrudavam-se dos palatos; a conversa fluíu.Algumas lembranças engraçadas acerca das caduquices do meu bisavô também falecido, alguns cafés ,queijos e brincadeiras. Todos estavam conformados, sabiamos que ela vivera muito e que tinha ido além de suas capacidades físicas. A prosa mineira é sempre excelente -disso sinto muita falta -.mas queria ir embora, como eu queria ir embora e não passar a noite lá.

No dia seguinte, na despedida, uma tia avó me disse :

- Volta sempre, sua avó gostaria.

Respondi que sim com a cabeça mas acrescentei para cercear as esperanças :

-É difícil pegar sempre estrada, os estudos não estam fáceis.

Ela entendeu o recado.

Da janela me despedi da cidade, arrependida por não tê-la visitado mais vezes.

E foi assim.Era justo, a ordem natural das coisas, só que para o coração, nada é mais justo que a presença de quem amamos.E por isso, não sei se volto tão cedo. Ainda que o carinho pelos parentes exija algum contato, o nosso elo maior se fora.

Quero voltar com meus filhos - talvez a ferida já esteja bem menor e as lembranças menos límpidas não tragam tanta saudade - vou querer que conheçam um pouco dessa minha experiência que , apesar de dolorida, me mostra que ter um coração de carne e amar é o que realmente dá sentido as nossas vidas. Esse é afinal, o legado que minha avó nos deixou.